domingo, 17 de agosto de 2008

Tantos anos...

Nunca te disse, mas, por mais que em minhas infinitas divagações eu fuja disso, as mais ternas memórias que guardo da juventude trazem teu semblante estampado na capa. Aquelas tardes distantes, em que eu ainda remoia uma paixão muito viva, como um garotinho que sente o remorso de um vaso quebrado, ainda pairam sobre minha cabeça, como sonhos que fogem pela manhã. Nunca te disse, mas como quisera aquele garotinho confessar seu crime e sofrer as conseqüências.
Aquele calor que toma conta dos corpos juvenis... não, já não era eu apenas um garoto quando tuas formas me pareceram mais do que apenas o corpo feito para uma voz e uma mente. Como as horas que antecedem uma tempestade que demora a chegar, o calor que veio não foi súbito, inadvertido. Foi calculado, intencional, pensado e remoído. Amor que é amor não chega de repente. Demora a chegar, é construído antes mesmo de ser sentido. Construído por ações, palavras, toques, suspiros. De todos, hoje só me restam cinzas, como fotografias antigas, que só hão de desbotar ainda mais a cada hora em que passo a admirá-las.
“Casou-se, mudou-se, foi morar na Europa ou na África, teve um filho e foi morar com a mãe, morreu, sumiu.” Posso inventar qualquer desculpa, nada mudaria os anos cinzentos que passaram. Nada me faria esquecer, nem faria com que esquecesses. “Tolo, ainda escreves como se pudesse dirigir-lhe a palavra.” Quantos anos perdi naquelas tardes tristes, não aquelas em que eu ainda era um perfeito iludido, mas aquelas em que esperava ouvir tua voz a qualquer momento, as tardes tristes em que me sentei na varanda tentando encontrar sentido nas sombras que aquele antigo carvalho lançava no gramado, encarcerado em minha própria solidão? Quanto tempo foi perdido pensando em ti? Quanto tempo realmente perdi? Perdi realmente? Perdi o que?
Por tão tolas palavras, que foi feito da minha vida? Fui então um mendigo por muitos anos. Não me faltava dinheiro, não me faltava uma cama. Ia mendigando-te pelas ruas, te pedia nos semáforos e aos passantes, mas todos tinham seus olhos apenas para o chão. Pensava ter achado, quando vinha um outro qualquer e lavava minhas esperanças. Desses anos todos, sobraram-me apenas memórias distantes e meus olhos cansados. Não, não me encare, mesmo se me encontrares na rua. Não me digas que sentes muito, não me digas que sentes saudades, afinal nem mais te reconheço. O que me sobrou de ti foi apenas aquele momento em que, com os olhos em pranto, me deste as costas e te foste. Não me lembro das palavras, não me lembro do que acontecera, não me lembro nem daquela dor que li em teus olhos. Hoje vivo somente por aquele momento. Tentando compreender loucamente o que aconteceu conosco, o que aconteceu contigo, o que aconteceu comigo.



“You are my sweetest downfall
I loved you first…
Beneath the sheets of paper
Lies my truth…”

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Ressentimento

"Caro pai,
como você está? Eu seria falso demais se dissesse que não sei. Fiquei sabendo, depois daquele dia em que encontrei mamãe na rodoviária, de partida para o interior, com os olhos vermelhos de choro, um olho roxo de fúria (não dela) e a cara lavada em pranto. E quanto tempo faz? Quatro, cinco anos? Já perdi a conta, acho que na verdade nunca prestei atenção nisso, tentei não dar importância ao tempo que se passava para que, quem sabe, ele passasse mais rápido, e mal percebi que aquela foto que foi comigo não me deixava mais furioso. De qualquer modo, contaram-me o que aconteceu, não fiquei chocado, não fiquei triste, nem feliz. Senti-me humilhado, como se a vida viesse zombar da minha revolta. Não, as marcas ainda doem, não só na alma. Agora vêm dizer-me que se andar outra vez nada da vida poderá fazer, a não ser envelhecer triste em sua cama fria. E querem minha compaixão? Que deus foi esse que ensinou ao homem a compaixão pelo estuprador de sua mulher, pelo assassino de seus irmãos, pelo ladrão da sua casa? Se soubesse mais cedo, talvez tivesse lhe proposto uma festa de despedida, um jantar em sua homenagem. "Ao homem do ano, ao pai do ano, ao marido do ano!" Tanta incoerência nesse mundo.
Sabe bem que minha preocupação nunca foi ofender-lhe pai, só quero que possa manter essas recordações tão agradáveis que você tem, escondê-las como se fossem segredos, guardá-las, como roupas usadas, em um armário. Enterrá-las como se fossem um corpo em decomposição: nunca.
Queria agradecer pela infância marcada...(não, aqui não falta nenhum complemento como "...pelos acampamentos no quintal" ou "...pelas noites em que, quando o sono não vinha, você vinha contar-me uma história"); agradecer pelas noites passadas trancado no armário do meu quarto, pelas grandes emoções causadas pela grande bebeção, pelos afagos carinhosos de seus tapas e murros. Mas tinha razão quanto a uma coisa: cresci para ser ninguém, um ninguém para alguém que nem sabe mais distinguir o próprio filho de um cão. Você não se esquecerá do rosto do seu filho, se em vida não o conhecia, como poderia esquecê-lo em morte? Da última vez que vi você, pai: roncava alto na poltrona. Sente falta? Mais uma fraqueza sua. Queria agradecer pela ótima vida que você reservou para seus filhos, praticamente prostituíndo nossas mentes, por mais um gole daquela maldita bebida.
Sei que não sairá novamente andando desse hospital, então não há necessidade de pedir que não me visite. Peço lhe apenas que não seja tão covarde no momento de enfrentar aquilo que nos impôs há tantos anos atrás. Se tiver que morrer, morra. Se tiver que ficar calado, fique. Mas se um dia morrer nessa maldita cadeira de hospital da qual lê minha carta, não se surpreenda por ter por companhia somente as sombras do fim da tarde, longas, frias, solitárias.


Do seu filho."
Obs.: texto fictício e não autobiográfico.

terça-feira, 12 de agosto de 2008

Frangos



"Não diga que não falei das dores..."

Nunca ninguém me disse: "Chore, desespere-se, pois nada vai melhorar." Fugimos das más notícias como a noite do dia e ainda assim as supostas palavras de consolo que tanto esperamos (Nunca vêm!) não nos trazem nada além de impaciência, inconstância, incertezas. A ânsia por algo que nos tire da letargia que se segue ao leite derramado é maior do que a própria tragédia. Mas sofremos, simplesmente porque somos grandes covardes, frangos sem penas, cacarejando por um pingo de decência quando deveríamos ser as galinhas, as grandes putas do cercado, vendendo a Deus e ao mundo tudo que nos seja menos valoroso que nossos próprios pudores. Engraçado pensar que, em algum momento de nossas vidas, tivemos a chance de ser a galinha.
Tivemos a chance de ser a vaca a ser ordenhada.
Pouco me importo com a lascívia, pouco me interessa a podridão disso tudo. Chega um momento em que tudo que há para ser criticado já o foi no mínimo duas vezes, um momento em que só outro magnânimo fiasco pode sustentar nosso, por vezes simplório, espírito crítico, tão confinado em sua aversão ao próprio escândalo. Uma pequena sugestão. Senta no seu banquinho e recita sua tabuada, garoto, pois o mundo é triste, e mesmo que alguém venha encher seus ouvidos com essa baboseira cínica sobre o lado bom das coisas, todo o lodo que o cerca, um dia, cobrirá essa boca torpe e sua mente débil.

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Inútil

"Oh, vida cruel!" disse, por fim, a pobre figura , desgostosa e angustiada. Não lhe parecia haver alma outra no mundo que não o gato que a observava de uma janela qualquer, mas, ainda assim, teve vergonha. Vergonha de nunca ter se casado, vergonha de nunca ter tido a coragem de dizer a sua mãe o quanto realmente a odiava, vergonha de não ter alimentado seu cão antes de sair para seu último passeio pelas ruas dolorasamente vazias, vergonha por não poder desistir sem que sua infame idéia voltasse a atormentá-la. Teve vergonha, vergonha de ter vergonha, de uma decisão apressada ("Diabos, vamos com isso!"), de uma história ("Minha história? Que história?"); teve vergonha também do arrependimento (aquele que se escondia atrás da máscara do bom senso contrariado, atrás de tudo com o que se quer romper, tudo o que se quer deixar para trás; sim, aquele que a fazia ainda pensar, aquele que a fez romper o silêncio da noite com suas palavras tolas que ninguem mais ouviu, além do gato na janela)?
"Mas que sentido há nisso?" pensou ela, não se atrevendo a proferir as palavras e estragar o final perfeito da sua novela pessoal. Afinal, se não tivesse tantos arrependimentos não teria motivo para estar ali, àquela hora da madrugada, a ponto de sujar a calçada 10 andares abaixo. Se não fossem suas pequenas loucuras, não estaria ali, ao léu, largada à vida e à própria sorte (ou ao próprio azar), prestes a tornar se mais uma mancha no asfalto. Sentiu-se realmente tentada a descer daquele parapeito e pedir desculpas ao probre gato por estragar o clímax da cena, voltar para casa em seu passo lento, tremendo de arrependimento e medo do que quase fizera, arrastando-se pela calçada molhada até a porta do prédio de dois séculos atrás onde morava, entrar em seu apartamento e adormecer no sofá em um misto de êxtase e nojo, nojo do odor daquele lugar odiável, nojo de si mesma, nojo e ódio de sua cabeça fraca e de sua vida inútil.
Pensou bem. Voltar para casa daria muito trabalho.
E se foi.

terça-feira, 1 de julho de 2008

Confusão?

Confundiram-me.

Primeiro pensei ser brincadeira, mas ao me deparar com tamanha dúvida tive outras perguntas mais. "Conheço-te de algum lugar?" me perguntaram, repondi prontamente "Creio que não.", mas quando colidiu comigo "Pareces me familiar..." fiquei sem resposta.


Pergunta 1:
De onde, diabos, iria eu conhecer aquela pessoa?
Veio-me a resposta. Confundiram-me.


Pergunta 2:
Mas, ainda assim, de onde veio tal familiaridade?
Veio-me a resposta.
"Copiaram-me! Absurdo!
Não se respeitam mais os direitos autorais nesse país?"










"Aos pobres dementes
Que, mesmo ainda em botão,
Por esta vida intermitente
Intermitentemente vão."

segunda-feira, 23 de junho de 2008

Das palavras

"A monotonia que, no silêncio, preenche todo o vazio desta imensidão..."
Um verso qualquer, palavras ajuntadas aleatoriamente, incalculadamente, descuidadamente, que no entanto nos parecem tão comuns. Sempre que me sento frente a uma folha vazia de papel e a minha fiel caneta, "mi unicornio azul", imagino se o que poderia saltar deste vazio para o vazio da folha seria realmente apenas mais um plágio inconsciente ou mais uma marca da incompetência de um poeta inadvertidamente inexperiente. Penso, repenso. O que em tal singular ordem ou conjunto faz de tal fala um primor poético? Primor poético... existe realmente tal coisa? Você por acaso lê poesias do século XIV e acha que ali naquelas linhas tão rebuscadas há o mesmo sentimento que se vive e seu tempo? Você perde seu tempo lendo a verborréia que sempre salta aos olhos nos jornais e revistas, ouvindo a declamação infame de um carroceiro anunciando seus produtos à rua em sua voz rude, imaginando se um dia houve um poeta em tais moldes?
"Esqueces que as palavras são realmente tuas? Que a boca que antes declamava não passa mais de um antro de malidicências e palavras vãs? Pelo visto, crês que tua alma tem ainda o frescor da juventude, mas não vês que tuas idéias mostram as rugas da tua decriptude. Queres teus anos de volta, queres retomar todas as palavras já escritas e declamadas, queres apagar das memórias que um dia tuas ideias torpes já chegaram aos ouvidos atentos de teus amigos e amados. Não escreves para ver teus versos recitados a cada esquina, escreves por egoísmo, escreves por ódio. E que iria eu querer com isso?"

terça-feira, 17 de junho de 2008

O que parece?

É incrível perceber como uma música qualquer consegue remeter-nos a uma memória qualquer. Andei, corri, voei em sonhos nauseabundos antes de encontrar sanidade naquela melodia torta que saía do rádio. Demorei a entender que não era o caso de eu ter voltado a mim mesmo por todo aquele ruído rude que me vinha aos ouvidos, mas essa abrupta "dor", tão profundamente e aguçadamente aumentada por aquela combinação de mau gosto de notas e timbres que me fez parar. "Que merda é essa?" Não adianta disfarçar algo que no momento estava explícito mesmo em meus gestos e tremores, pois não há graça no ser humano sem suas excentricidades, expectativas frustradas ou irracionalidades atrozes. A luz que só meus olhos vêem, essa maldita luz que não me deixa dormir, não faria sentido para mais ninguém, ainda assim é esta minha loucura que me permite olhar-me no espelho e não desejar ser outro alguém. Ou será que desejo? Secretamente louco, indiscretamente tolo, quem há de duvidar da minha certeza? (Tenho alguma certeza? Como assim "certeza"? Por o que me toma? Quem é?)
Ah! as graças de um demente dirigindo uma ambulância através da estrada de tijolos amarelos! (Que se cuide o mágico de Oz!) Com certeza mais são que qualquer um dos corajosos homens de lata que andam por aí!
E essa maldita melodia monótona, cacofônica, monocórdica martelando incessante em meus ouvidos! "Calem a maldita boca que canta, cortem a maldita mão que toca e degolem esse maldito compositor!" pois, neste salão em que dançam minhas idéias, esse maldito mantra não mais há de tocar!