quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Ressentimento

"Caro pai,
como você está? Eu seria falso demais se dissesse que não sei. Fiquei sabendo, depois daquele dia em que encontrei mamãe na rodoviária, de partida para o interior, com os olhos vermelhos de choro, um olho roxo de fúria (não dela) e a cara lavada em pranto. E quanto tempo faz? Quatro, cinco anos? Já perdi a conta, acho que na verdade nunca prestei atenção nisso, tentei não dar importância ao tempo que se passava para que, quem sabe, ele passasse mais rápido, e mal percebi que aquela foto que foi comigo não me deixava mais furioso. De qualquer modo, contaram-me o que aconteceu, não fiquei chocado, não fiquei triste, nem feliz. Senti-me humilhado, como se a vida viesse zombar da minha revolta. Não, as marcas ainda doem, não só na alma. Agora vêm dizer-me que se andar outra vez nada da vida poderá fazer, a não ser envelhecer triste em sua cama fria. E querem minha compaixão? Que deus foi esse que ensinou ao homem a compaixão pelo estuprador de sua mulher, pelo assassino de seus irmãos, pelo ladrão da sua casa? Se soubesse mais cedo, talvez tivesse lhe proposto uma festa de despedida, um jantar em sua homenagem. "Ao homem do ano, ao pai do ano, ao marido do ano!" Tanta incoerência nesse mundo.
Sabe bem que minha preocupação nunca foi ofender-lhe pai, só quero que possa manter essas recordações tão agradáveis que você tem, escondê-las como se fossem segredos, guardá-las, como roupas usadas, em um armário. Enterrá-las como se fossem um corpo em decomposição: nunca.
Queria agradecer pela infância marcada...(não, aqui não falta nenhum complemento como "...pelos acampamentos no quintal" ou "...pelas noites em que, quando o sono não vinha, você vinha contar-me uma história"); agradecer pelas noites passadas trancado no armário do meu quarto, pelas grandes emoções causadas pela grande bebeção, pelos afagos carinhosos de seus tapas e murros. Mas tinha razão quanto a uma coisa: cresci para ser ninguém, um ninguém para alguém que nem sabe mais distinguir o próprio filho de um cão. Você não se esquecerá do rosto do seu filho, se em vida não o conhecia, como poderia esquecê-lo em morte? Da última vez que vi você, pai: roncava alto na poltrona. Sente falta? Mais uma fraqueza sua. Queria agradecer pela ótima vida que você reservou para seus filhos, praticamente prostituíndo nossas mentes, por mais um gole daquela maldita bebida.
Sei que não sairá novamente andando desse hospital, então não há necessidade de pedir que não me visite. Peço lhe apenas que não seja tão covarde no momento de enfrentar aquilo que nos impôs há tantos anos atrás. Se tiver que morrer, morra. Se tiver que ficar calado, fique. Mas se um dia morrer nessa maldita cadeira de hospital da qual lê minha carta, não se surpreenda por ter por companhia somente as sombras do fim da tarde, longas, frias, solitárias.


Do seu filho."
Obs.: texto fictício e não autobiográfico.

Um comentário:

This is my life disse...

Nossa Guii que texto forte,mas muito bom =]

te amoo